Ocupação iniciada por esposas de brigadianos resiste à reintegração de posse a ser executada pela própria BM

 

Apesar de ter estado desocupado por mais de oito anos, o prédio foi sede do Ministério Público Estadual. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Publicado em: novembro 25, 2018

Fonte: Sul21 

Giovana Fleck

“Entra! Entra! Entra!”. Judith Escandiel  se recorda da correria no dia 2 de junho de 1999. Nessa data, cerca de 20 esposas de cabos e soldados da Brigada Militar ocuparam um prédio de 12 andares na avenida Borges de Medeiros. “Tudo foi organizado pelas mulheres, pelas esposas”, explica. Judith levou alguns móveis e eletrodomésticos, que conseguiu salvar após um incêndio em sua antiga casa. Seu marido, assim como os outros brigadianos, não puderam se envolver na mudança. “Se perguntassem, tínhamos que poder responder que fomos nós.”

Há quase 20 anos, mais de 50 famílias habitam o imóvel. A ocupação é resultado da greve dos policiais militares no Rio Grande do Sul de 1997. Os policiais reivindicavam aumento salarial e melhores condições de trabalho. No Rio Grande do Sul, os brigadianos, na época, ganhavam 100% a título de risco de vida, mas reivindicavam 222%. O governo, no entanto, ofereceu aumento de, apenas, 150,44%.

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Em agosto do mesmo ano, a Associação dos Cabos e Soldados (Acasol) chegou a denunciar à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa a cúpula da Brigada Militar. Segundo a entidade, os soldados gaúchos estariam sendo submetidos a ‘‘uma série de perseguições e represálias’’. Com baixos salários e sofrendo retaliações, as esposas dos militares decidiram se mobilizar para garantir que suas famílias não perdessem o direito à moradia. Assim, iniciaram a Ocupação 2 de junho.

As famílias se organizavam em reuniões quase diárias. O saguão do prédio virou auditório. “No início, a gente se reunia pra pensar em como não sair mais. Ninguém tinha mais condições de morar de aluguel”, lembra Judith. Ela explica que o prédio foi escolhido pela localização e a estrutura. Apesar de ter estado desocupado por mais de oito anos, foi sede do Ministério Público Estadual – deixando um esqueleto de salas que, facilmente, foram convertidas em apartamentos.

Uma semana depois da entrada das primeiras famílias, um grupo de brigadianos foi enviado pela Prefeitura para averiguar o que estava acontecendo no prédio. “Bateram na porta e quando viram quem era que estava dentro… Quando viram que eram os colegas… Bom, foi um choque”, recorda Alvaci Santos, a Profe. O apelido foi dado por ter sido professora do Estado. Viúva de um militar, chegou na ocupação um dia depois da entrada das famílias dos brigadianos. “Mesmo não tendo ligação com a Brigada, elas me acolheram. A situação dos professores era ruim naquela época. Hoje é pior. Mas se lá eu já não conseguia pagar o aluguel…”

Segundo ela, o impasse entre os oficiais da Brigada foi resolvido com um simples: “Conversem com os seus superiores”. “O comandante disse isso na porta do prédio. E ficou por isso mesmo. Eles sabiam das dificuldades. Estavam todos na mesma situação.”

Há quase 20 anos, mais de 50 famílias habitam o imóvel. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Situação legal

O prédio é de propriedade do Estado. Segundo a representante da ocupação, Eliane dos Santos, é parte do inventário do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (Ipergs). Ao longo dos anos, o processo de reintegração de posse evoluiu de forma lenta.

Em 2018, houve o avanço das discussões sobre a divisão do IPE em duas autarquias distintas – o que faria com que os imóveis do Instituto passassem para a tutela do Estado. Assim, o processo caminhou. Com a divisão oficializada pelo Piratini em agosto, a reintegração de posse foi decretada. Com a coordenação de Eliane, que passou a exigir a volta das reuniões entre os moradores, as 52 famílias passaram a organizar sua resistência na Ocupação. “Cada vez que o processo caminhava, gerava pânico. As pessoas precisavam de uma orientação, a gente precisava se unir”, conta Eliane. Assim, fundaram uma cooperativa que, em abril, foi registrada na Junta Comercial de Porto Alegre e, em julho, no Departamento Municipal de Habitação (Demhab), criando um vínculo oficial entre as famílias e o prédio.

Além disso, conseguiram auxílio de uma advogada e do escritório de arquitetura AH! Arquitetura Humana – ambos serviços pagos com a contribuição arrecadada pela cooperativa. Segundo a arquiteta e urbanista Taiane Beduschi, existem dois momentos diferentes para encaminhar uma negociação que possibilite a permanência das famílias. O primeiro seria um estudo de viabilidade do espaço. Junto de duas engenheiras civis, um laudo técnico está sendo concluído atestando que a estrutura pode ser convertida em espaço de moradia, com Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndios (PPCI) e o projeto arquitetônico de reformas. Após isso, é necessário entender os trâmites legais para que o imóvel passe para a tutela de seus moradores.

De acordo com Eliane, a cooperativa cumpriria esta função – nos moldes da Ocupação 20 de Novembro. A ideia inicial é que os moradores mantenham seu direito à moradia no local e, em contrapartida, arquem com os custos da renovação do prédio. “O projeto estará concluído até o final do ano, mas não há um prazo exato para a entrega do orçamento”, explica Taiane.

No início de novembro, os moradores se reuniram com vereadores e representantes da Procuradoria Geral do Município (PGM) e do Demhab na Câmara Municipal de Porto Alegre, em encontro da Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação (Cuthab), para encaminhar soluções para o caso. Na ocasião, ficou acertado que a Comissão tentaria interceder pela abertura de diálogo entre o Estado e os representantes da cooperativa. “Existem muitos prédios ociosos em Porto Alegre, e diferentes maneiras de ocupá-los. É necessário que se pense em novos projetos para para garantir o direito funcional e social dos imóveis”, aponta Taiane.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Modernização Administrativa e dos Recursos Humanos (Smarth) informou que aguarda finalização de estudos de viabilidade do prédio feitos pela Procuradoria Geral do Estado e pelo Ministerio Público. No entanto, não informou uma data para a conclusão do laudo.

Térreo

Guinevere Rodrigues em sua loja, no térreo da Ocupação Dois de Junho. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Na base do prédio de 12 andares, no canto esquerdo, Guinevere Rodrigues destrava a parte de vidro da porta que limita sua loja e a rua. “Esquentou hoje, né?”, diz, abrindo a passagem de ar. O único ventilador do ambiente é dedicado a parte de seu ofício: secar as esculturas de biscuit esculpidas à mão. Guinivere divide seu tempo entre ser artesã e mãe. “Vir para cá me proporcionou estar perto dos meus filhos e do meu trabalho de uma forma mais saudável.”

Há nove anos atrás, sua família alugava um apartamento na rua Duque de Caxias. Ela trabalhava em casa, seu filho mais novo tinha três anos. “Era um olho na escultura e outro no menino.” Foi seu pai quem soube da ocupação. “Ele veio visitar. Acabou nunca mais saindo”, resume.

Ela, os filhos e o marido acabaram indo junto, ocupando um espaço no térreo. O apartamento pode ser acessado tanto pelo saguão principal do prédio quanto pela fachada na lateral. Isso possibilitou que Guinivere instalasse seu próprio estúdio ao lado de casa. “Mudou a minha forma de trabalhar. Com um espaço só meu, passou a ser mais fácil me chamar de artesã.”

Guinevere anuncia seus produtos em uma página no Facebook. Entre as lembranças de aniversário, enfeites para bolos e tiaras, ela mostra uma pilha de papeis com as encomendas para o mês. “Fiquei muito tempo ganhando nada. Agora posso ficar tranquila no final do mês.”

Ao entrar no prédio e subir as escadas, Guinevere é cumprimentada por todos os vizinhos que passam. “Nós não queremos nada de favor. Eu quero que a nossa situação seja regularizada, que eu possa pagar pelo meu apartamento. Viemos parar aqui porque precisamos.”

Primeiro Andar

Moradora do primeiro andar, Alvaci Santos se recorda do início da ocupação. “Soube depois de ver no jornal, no dia seguinte a entrada. Vim aqui olhar, ver como funcionava. Encontrei uma ex-aluna de Alegrete. Disse que estava atrás de casa.” Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ao subir o primeiro lance de escadas da Ocupação Dois de Junho, a primeira coisa que se observa é a frase ‘Nunca foi sorte, sempre foi Deus’ escrita com letras coloridas em um fundo escuro. “As crianças adoram vir aqui apagar”, conta Alvaci. Professora da rede pública por mais de 30 anos, ela leva a magistratura em sua identidade. “Aqui, tenho pelo menos uns 30 que foram meus alunos”, conta, citando os nomes dos vizinhos. Mesmo aposentada, não perdeu a alcunha de ‘profe’. “Todos me reconhecem assim. É o que eu sou.”

Moradora do primeiro andar, Profe se recorda do início da ocupação. “Soube depois de ver no jornal, no dia seguinte a entrada. Vim aqui olhar, ver como funcionava. Encontrei uma ex-aluna de Alegrete. Disse que estava atrás de casa. Como eu não era esposa de brigadianos, mesmo sendo viúva de militar, se reuniram para decidir se eu poderia ter um espaço.” Ela pode escolher onde queria ficar. Ficou no primeiro lance de escadas. “Estava terrível”, diz, sobre o estado do local.

Na época, Profe alugava um apartamento na avenida Érico Veríssimo. Os filhos ficaram lá enquanto ela limpava o que seria a casa da família. Entre a reforma e os deveres de mãe, Profe seguia dando aulas. “Sempre houve um problema entre o Executivo e o magistério. Naquela época, os salários eram pagos em dia. Mas não era bom. Não era o suficiente. Mas dizer isso hoje, quando os salários estão parcelados, parece muito.”

Na porta de sua casa, ela criou um espaço colaborativo para que outros moradores coloquem plantas no corredor. “Cada um faz o que pode”, diz, enquanto ajeita uma samambaia em um dos vasos. Para ela, a entrada da cooperativa criou um senso de comunidade que havia se perdido entre os moradores. “É o que tem nos dado esperança.”

Quarto Andar

Eliane cresceu no prédio. Suas memórias de infância são subindo os 12 andares das escadas com as suas primas. “Meu tio era da Brigada. Minha tia estava aqui desde o início. Quando eu precisei, não hesitaram em me ajudar”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Os brigadianos viviam com salários muito defasados e com atrasos. Vir para cá foi uma maneira de serem enxergados pelo governo. O problema é que o governo permaneceu, por 20 anos, esquecendo deste lugar. Agora, lembrou porque quer de volta”, define Eliane. Ela cresceu no prédio. Suas memórias de infância são subindo os 12 andares das escadas com as suas primas, uma moradora do oitavo andar e outra do terceiro. “Meus tios eram da Brigada. Minha tia estava aqui desde o início. Quando eu precisei, não hesitaram em me ajudar.”

Segundo ela, muita coisa mudou nos últimos 19 anos. “Muita gente morreu, muitos se mudaram. Sempre foi difícil fazer com que as pessoas aqui se organizassem. Essa conversa só começou a acontecer mesmo em janeiro do ano passado.” Cansada de lidar com o desespero pelo medo de ficar sem casa, Eliane decidiu montar os primeiros grupos que resultariam na Cooperativa Dois de Junho. “Conseguimos registrar a cooperativa. Então, temos uma forma de associação comercial registrada e vinculada tanto a nós quanto ao prédio.” Eliane é a presidente da cooperativa. Fora ela, há também um vice-presidente, duas secretárias, duas tesoureiras e seis suplentes.

Com isso, seguiram para a Defensoria Pública. “Chegando lá, ouvimos que não tínhamos o que fazer. Mas vai repassar essa informação para pessoas que estão morando no prédio há décadas? Decidimos não ficar parados. Cada pessoa tinha um contato. Contratamos uma advogada e, agora sim, temos domínio sobre o que está acontecendo.”

Ela morava com as três filhas e o marido antes de ir para a Ocupação, em um apartamento na rua Duque de Caxias. “Pagava uma fortuna”, lembra. Quando o imóvel foi vendido, a família teve que sair. “Não tinha para onde ir. Meu marido tinha recém feito uma cirurgia. Minha prima me convenceu a conversar com o pessoal daqui. Em 15 dias eu estava me mudando.” Isto ocorreu em 2012. Eliane conta que o processo de convivência foi muito natural com os vizinhos. “Tu bate na porta, chama pra uma conversa. Temos essa noção de que temos essa luta em comum. Isso nos une.”

Terraço

Rosana Maria Soares é moradora do último andar da Ocupação. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Rosana Maria Soares mora no último andar da Ocupação. Seu apartamento tem uma vista quase que paralela ao viaduto Otávio Rocha. Todos os dias, pela manhã, ela assa pães que vende entre os vizinhos. “Todos já sabem quando eu estou descendo, pelo cheirinho de pão.”

Sua irmã, casada com um brigadiano, morava no prédio antes de ela ir para lá. “Quando eu me separei, vim morar com ela.” Ela diz que não trocaria o último andar por outro mais próximo do térreo. “A vista é o que me prende. Quem mais pode olhar Porto Alegre assim? O problema é a escada. Na verdade, é ela que me faz perceber que estou envelhecendo.” Rosana tem problemas cardíacos. “Tenho muito cansaço. Minha médica não sabe que eu subo tudo isso aqui. Venho parando, devagarinho.” Por causa da saúde, deixou de trabalhar como auxiliar em escritórios e passou a cozinhar para os vizinhos.

Ela olha em volta. Tira um dos pães que sobrou da manhã com cuidado do forno. “Ninguém está aqui pedindo favor. Ninguém quer favor de ninguém, não queremos lugar de graça. Queremos uma moradia. Se a gente conseguir morar aqui, será uma maravilha. O que não pode é vir brigadiano tirar brigadiano de suas próprias casas.”