‘É possível famílias de baixa renda morarem no Centro’: Começa reforma do Assentamento 20 de Novembro ‘É possível famílias de baixa renda morarem no Centro’: Começa reforma do Assentamento 20 de Novembro

Proposta de renovação da fachada do Assentamento 20 de Novembro, onde a principal mudança é a ausência de grades. Foto: Reprodução/AH! Arquitetura Humana

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Fonte: Sul21 

Giovana Fleck

Em sua casa, Tatiana Moura Nogueira tem alguns itens em destaque. Na estante, os últimos volumes da Enciclopédia Barsa estão dispostos na última prateleira. Quadros e porta-retratos com fotos dos filhos na parede. No centro da sala, o mais novo dorme. O sofá, desmontado, logo dará lugar a um novo que é guardado com esmero. Duas máquinas de costura estão encostadas na parede principal com pilhas de tecidos e linhas sobre elas.

Uma abertura na parede deixa a luz natural entrar e destaca uma pilha de tijolos. “Aqui, eram só ruínas quando eu cheguei.” Ela começou a coletar e limpar os tijolos que conseguia salvar. “Vocês vão voltar para o lugarzinho de vocês”, pensava. “Eu vou ter uma casa depois de 40 anos”, afirma Tati, com firmeza.

A fachada atual do Assentamento. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Tatiana é a matriarca de uma das 18 famílias que residem no Assentamento 20 de Novembro. Localizado no 4º Distrito, região próxima ao Centro de Porto Alegre (RS), o prédio está pronto para ser transformado. Depois de anos esquecido, foi ressuscitado com a ocupação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e se tornou conhecido pela comunidade pelos eventos culturais que passou a sediar. Em 2018, finalmente, será renovado. Oficialmente, a construção pertence à União, com direito de uso para habitação de interesse social. Mas os moradores, que caracterizam o espaço, são personagens centrais na elaboração do projeto – que prevê a criação de espaços multidisciplinares para geração de renda, lazer e, inclusive, educação infantil.

Financiado pela Caixa Econômica Federal, através do programa Minha Casa, Minha Vida Entidades, o projeto é conduzido pelo escritório AH! Arquitetura Humana em parceria com o arquiteto Paulo Bicca. Além disso, uma verba proveniente do projeto de assistência técnica Morar Sustentável, do Sindicato dos Arquitetos do Rio Grande do Sul (Saergs) com patrocínio do CAU/RS irá viabilizar a revitalização sustentável do espaço. Todo ano eles disponibilizam 2% da verba para projetos ligados ao meio ambiente. Atualmente, a obra encontra-se em fase final de aprovação pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, com previsão de início para o segundo semestre de 2018.

Tati não precisa mais dormir sob a lona preta

Tati, costureira e moradora do assentamento 20 de novembro. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Tatiana é educadora social por formação, mas hoje é costureira e artesã por gosto. “Quero montar uma cooperativa”, diz. “Mas não quero ser chefe. Quero dar oportunidades para outras famílias que, assim como eu, precisam.” Tati veste uma blusa rosa, com estampa florida e uma amarração na lateral. “Gostou? Fiz ontem”, diz sorrindo. “É melhor assim para amamentar.” Até a visita do Sul21, ela estava à 60 mochilas de finalizar uma entrega de mil peças – todas feitas com guarda-chuvas reciclados.

Tati viveu a infância em um acampamento do Movimento Sem Terra. Saiu de lá após ter seu primeiro filho. “Quando tu tem filhos a vida te joga pra todos os cantos. Tu tem que trabalhar, tem que sustentar.” Ela conta que “saiu pro mundo”, mas que continuou morando em ocupações. Por um curto período, chegou a morar na rua.

Há cinco anos, passou a morar no Assentamento 20 de Novembro. “Muda tudo. Chamam de invasão para criminalizar. Mas estar numa ocupação assentada, com um grupo por trás trabalhando para que a tua moradia seja digna. Pra quem já morou em lona preta, hoje eu moro em um apartamento de luxo.” Ela se diz privilegiada. “Hoje, eu moro num assentamento, no centro de uma capital desse país. Isso é muita 

Todos os cinco filhos já moraram com ela no apartamento dentro do 20 de Novembro. Os dois mais velhos já são independentes da mãe. Ela fala da filha. Formada no Ensino Superior, ela conseguiu, recentemente, dar entrada no próprio imóvel. “Minha filha é dona de apartamento”, ri, com orgulho. Ela lembra da primeira noite que passou no assentamento. “Não conseguia dormir. Faltava o barulho da lona batendo de noite. Eu ficava olhando pro teto”. Ela diz que a construção do 20 de Novembro é a construção de sua vida. “Aqueles tijolinhos são o começo”, afirma.

A filha de Ni pode brincar despreocupada

Ni, em sua casa, com Tainá, durante visita do Sul21 em 2016. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ceniriani Vargas, a Ni, vive no Assentamento com o marido e as duas filhas. A mais nova, Tainá, pediu para usar a camiseta do MNLM no dia da entrevista. “Explica pra tia que camiseta é essa”, pede a mãe. Encabulada, ela diz: “Fora, Temer!”, enquanto mostra o quarto rosa, cheio de brinquedos, que divide com a irmã mais velha.

Ni é quem conta a história da ocupação. “11 anos em um minuto”, brinca. O 20 de Novembro começa com a segunda ocupação de um prédio entre a rua Caldas Júnior e a avenida Mauá; hoje, Ocupação Saraí. No prédio, se formaram os primeiros grupos de trabalho que deram origem à Cooperativa 20 de Novembro. “Lá, o terceiro andar era dedicado à produção. Marcenaria, serigrafia, artesanato, confeitaria…”. Assim, as famílias começaram a se organizar em torno da geração de renda em conjunto com a moradia.

No entanto, no início de 2007, eles foram despejados. A partir disso, se inciou um processo de negociação com a prefeitura que resultou na permanência das famílias por seis anos no entorno do Estádio Beira-Rio. Porém, por conta da Copa do Mundo de 2014 – e o estádio cotado como casa para alguns jogos – ocorreu a segunda remoção.

Junto com isso, um movimento de reação, para que se garantisse o reassentamento das famílias em uma região próxima ao centro da cidade. “Daí, surgiu a possibilidade de que imóveis da União pudessem ser convertidos em moradia popular.” Com a aprovação de um decreto pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que buscava destinar imóveis desocupados para habitação social, a Cooperativa apresentou o prédio na Barros Cassal como alternativa.

Em 2013, a Cooperativa inciou o processo burocrático para receber o imóvel da União. O prédio desejado foi projetado para ser um hospital para os funcionários da rede ferroviária. A obra, datada da década de 1960, nunca foi concluída. Em 2016, a escritura passou a pertencer à Cooperativa. No mesmo ano, o contrato com a Caixa foi assinado para que as obras tivessem início.

A partir disso, as famílias passaram a se reunir com os arquitetos do escritório AH! Arquitetura Humana para começar o processo de planejamento participativo. “Esse não é um projeto que parte do arquiteto para o cliente. Claro que há um processo de lapidação e organização daqueles sonhos em algo mais sólido, mas tudo é construído com eles”, explicam Paola Maia Fagundes, a Lola, e Franthesco Spautz, integrantes da equipe do AH!.

O prédio, que tem 2,9 mil metros quadrados, terá creche, cozinha e lavanderia comunitárias, além de área destinada à geração de renda, para auxiliar nas taxas condominiais, e sala de reuniões. No pátio, está prevista uma área chamada “largo cultural” para a realização de eventos que também vão gerar renda. Após a obra, o espaço poderá abrigar até 40 famílias em apartamentos de um ou dois dormitórios.

“Nosso portão está sempre aberto. Sempre”, diz Ni. Ela explica que um dos objetivos principais do Assentamento é ser um espaço de todos, não só dos moradores. Por isso, festividades, discussões e outros eventos costumam ser sediados no pátio do prédio.

As ilustrações do projeto mostram uma entrada ampla, onde as grades que existem hoje dão lugar a canteiros e a uma passarela que conduz as pessoas para dentro do prédio. “Queríamos propor o fim das grandes, mas estávamos angustiados por não saber como explicar isso. No final, essa foi uma das demandas dos próprios moradores, e isso foi incrível”, explica Franthesco.

“O movimento social carrega esse papel importante. São pessoas que realmente compreendem o papel do Assentamento no centro da cidade e lutam por isso. Nós, enquanto arquitetos, estudamos na academia a compreensão de que uma cidade sem muros se torna muito mais humana. Mas, isso partir dos moradores, reflete exatamente essa realidade”, completa Lola. Para ela, as histórias das pessoas deram significado ao projeto.

Eles contam que o propósito do escritório é trabalhar com questões relacionadas à cidade. “Já aprovamos o EVU (Estudo de Viabilidade Urbanística), estamos na fase de aprovação de projeto e em meio à tramitação do PPCI (Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio).” Eles chamam a parte da frente de Largo Cultural. “Ali, terá não só espaço para geração de renda, como biblioteca e uma ciranda.” Para eles, o principal é a relação do edifício com a cidade. “Não é um condomínio, que se fecha, que coloca grande. É um espaço para conexões”, explica Franthesco.

A ciranda é um espaço que surge dentro das ocupações do MST, em que os pais precisavam de um local para que seus filhos pudessem se ocupar enquanto trabalhavam ou estudavam. “Priorizamos essa questão das crianças, na região central da cidade há poucas vagas de educação infantil, e as que existem são para crianças acima de quatro anos”, relata Ni.

Gabriel Junqueira, professor de pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é um dos participantes do grupo que irá coordenar atividades pedagógicas no local, através de um projeto de extensão. “A ciranda é destinada para crianças que não conseguiram vagas nas escolas ou querem participar de atividades no turno inverso. O projeto irá disponibilizar dois monitores e dois bolsistas para estarem aqui contando histórias, brincando e desenvolvendo outros projetos para ajudar no desenvolvimento dessas crianças”, explica.

No momento, o Assentamento arrecada materiais de construção para viabilizar a finalização da ciranda, necessária entre as famílias mesmo antes da conclusão das reformas. Ni explica que qualquer ajuda é bem vinda, podendo ser entregue no próprio prédio. “Isso virou nossa prioridade pela autonomia das mães. Mas, no geral, o projeto inteiro representa o tipo de política habitacional que a gente defende. Para nós, é mostrar que é possível unir meio ambiente, geração de renda, educação infantil e moradia. É possível famílias de baixa renda morarem no centro”, conclui.

Confira mais fotos do projeto: 

Foto: Reprodução/ AH! Arquitetura Humana

Foto: Reprodução/ AH! Arquitetura Humana